Não via isso há muito tempo. E meninos...eu vi! Vi e participei das estudantadas dos anos 1960. Chorei com gás lacrimogêneo e vi os cavalos da polícia que avançavam contra os estudantes entre os quais me encontrava. Vi e vivi o comício das diretas no Rio de Janeiro, quando um milhão de pessoas exigia “Diretas já”. Vi minha filha adolescente, com o uniforme do colégio e a cara pintada, gritando “Fora Collor!”
Mas depois não mais vi... até agora. Quando pensávamos que a liquidez pós-moderna havia transformado a juventude em mera consumidora passiva de bens e ideias pré-fabricadas, eis que ela encheu as ruas. E marcha, protesta, grita. Infelizmente também comete atos violentos. Quando as ruas se enchem e a população é que as ocupa defendendo seus direitos, isso muitas vezes acontece.
É evidente que violência nunca é bom. Mas acho que esquecemos que a violência é sempre ou quase sempre gerada por outra violência. Pois há violência maior do que ter que deixar de alimentar-se para conseguir chegar ao trabalho? E trabalhar para pagar uma sobrevivência que implica escolher qual das necessidades básicas cortar do cotidiano precário e sofrido? E ter que tomar um, dois, três transportes cheios, sem manutenção ou segurança, para chegar ao local de trabalho após acordar quando a noite ainda exibe suas estrelas e o dia não raiou? E repetir de noite esta terrível gincana?
Apesar de tudo, é bom ver que a juventude não perdeu a capacidade de indignar-se e expor sua insatisfação em praça pública. É bom ver que os indignados não acontecem apenas no Chile, em Wall Street ou alhures. Acontecem aqui e agora quando sua paciência se esgotou. Os centavos a mais foram o estopim que revelou que o dragão da inflação está de volta, com os dentes à mostra.
Já as donas de casa o haviam sentido: no supermercado, no tomate e em muitos artigos de necessidade que de repente não cabiam mais em nosso bolso. Já nós todos, assalariados da vida, havíamos sentido que nosso salário não subia em igual proporção que os bens e serviços que usávamos.
A diferença é que agora há outro ator no cenário. A nova classe média à qual o governo abriu as portas do consumo também sentiu a mordida do dragão. E não admitirá de forma alguma abrir mão daquilo que sempre lhe foi negado e que de repente se encontra ameaçado. Defenderá suas recentes conquistas com unhas e dentes. Contra tudo e contra todos.
Com os recentes acontecimentos em São Paulo e outras capitais do país fica definitivamente claro que o sonho do Brasil país do presente, do pleno emprego, do crescimento exponencial acabou. O que resta é a realidade transparente de um país cheio de potencial, sim, que cresceu, sim, que conseguiu coisas muito importantes, sim. Mas para quem as dificuldades não acabaram. E as metas não atingidas também não.
O Movimento Passe Livre reivindica algo que fará o Brasil mais respeitado mundo afora: gratuidade no transporte público. Pois o fato de que os cidadãos abastados da maior cidade do país tenham dois carros para cada membro da família enfrentar o rodízio e transformar as ruas em caos não é riqueza. Riqueza verdadeira é quando os filhos da alta classe média usarem um transporte público de boa qualidade, com segurança e tranquilidade. E as ruas puderem voltar a ser espaços transitáveis.
Para além do Passe Livre abrem-se, no entanto outras discussões. A da educação de base, nunca bem resolvida. A da saúde, que continua a não merecer a atenção prioritária que deveria. E várias outras. A da corrupção, por exemplo, nunca resolvida e não mais tolerada.
O fato é que a juventude brasileira expressa a insatisfação que habita a alma de todos. E com tal força que já acumula algumas vitórias. A presidente Dilma fala em tom positivo sobre “ouvir a voz que vem das ruas”. O prefeito Haddad cogita em atender as reivindicações dos manifestantes. E em outras cidades a baixa da tarifa já aconteceu.
Só esperamos que as manifestações reencontrem o tom adequado: indignado, mas pacífico e ordeiro. Que não haja arruaças, violência, feridos. Como em toda discussão, quem grita e sai do tom perde a razão. Aqui também. Para que o “passe”continue “livre”é preciso responsabilidade no exercício da liberdade.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de vários livros como 'O mistério e o mundo - Paixão por Deus em tempo de descrença' (Ed. Rocco).
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